19 janeiro 2006

Clara

Os nós dos dedos das mãos de António já deviam estar habituados àquele frio agreste e ao trabalho pesado que lhes infligia. Estupidamente a pele escamava.
Largou a pá que caiu ruidosamente na terra. Era cada vez mais difícil aguentar aquele trabalho. Especialmente desde que a sua mulher tinha desaparecido. António não aguentava estar sozinho. Abriu a braguilha contente por saber que se ia vingar. Era uma vingança pessoal, porque não se podia tratar de um crime se a vítima não estava consciente, pois não?

Era estanho voltar a nascer. Era estranho voltar a viver. Abriu os olhos para os fechar de seguida. Era demasiado penoso tentar perceber o que estava ali a fazer. Insistiu consigo própria e voltou a olhar. Sim, só podia ser um hospital. Um ritmo de beeps marcava o compasso e vozes ecoavam no corredor. Um quarto branco e nu. E ela ligada a máquinas, a muitas máquinas, demasiadas. Quando estava prestes a arrancar o tubo que tinha na garganta, a porta abriu-se. Uma mulher de verde entrou.
- Não, não! – gritou; não foi bem gritar, foi mais berrar – O que é que pensa que está a fazer? Não arranque isso! Pare quieta!
Correu para a cama e puxou-lhe bruscamente o braço para baixo. Depois virou-lhe as costas e pegou num telefone branco, como o quarto.
- Sim, ela já acordou. Venha depressa, tenho medo que a maluca tente arrancar o tubo do ventilador outra vez. Sim, quando entrei. Está bem.
Chegou-se perto da cama e colocou mais uma almofada atrás das costas da paciente. Gestos bruscos, maquinais, de maneira absurdamente fria.

A porta não tardou a abrir de novo. Desta vez a companhia era maior. Dois homens. Um de bata branca e outro de casaco castanho. Uma mulher. Alta e elegante, mas roída pelos anos ingratos da vida.
Correu para ela e chamou-lhe filha. “Filha...? Ela é minha mãe? Então o outro deve ser o meu pai.”
- Como é que te sentes minha querida? – a ânsia daquela mulher quase de se cheirava no ar. Via-se, sentia-se, a voz tremia.
- Ela tem um tubo pela goela abaixo, achas que consegue falar? E também que raio de pergunta. Se tivesses tu um tubo metido na garganta, como é que te sentias...?
A mulher olhou para trás com um ar reprovador, ao qual o marido respondeu com um revirar de olhos.
- De facto, a paciente está incapacitada de falar. Suponho que posso desligar o ventilador durante um bocadinho, as constantes estão estáveis. – aproximou-se da cama – Vai tossir quando eu puxar, está bem?
Clara tossiu e vomitou. Vomitou de estômago vazio. Um cheiro nauseabundo e ácido invadiu de vagar o quarto. Ao menos o tubo já não lhe estava na garganta.
Pigarreou.
- Que dia é hoje?
- Querida tu tiveste um ataque cardíaco à dois dias. Na verdade, tu morreste à dois dias atrás. À noite depois do enterro recebemos um telefonema do coveiro em pânico a dizer que tu tinhas acordado. – fez uma breve pausa para verificar que a filha assimilava tudo o que lhe era dito, mas também para recuperar ela mesma do que tinha acabado de dizer – Tens estado a dormir desde então.
Lembrava-se de um homem com um bigode mal cortado e a boina rota. Ele estava a sorrir. Era uma imagem de poucos segundos, mas era aquilo que mais claro estava na sua mente...
Não se lembrava de mais nada. Espera! Havia mais qualquer coisa. Sim, um momento! Uma apoteose e depois, nada.

Clara voltou para casa umas semana depois. Amnésia, perturbações psicológicas e agressões verbais recorrentes.Nove meses mais tarde deu à luz um rapaz. Com 15 anos, virgem, Clara deu à luz um rapaz.

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