26 março 2006

Carlos


Concentrou-se na respiração já que o resto o afogava.
Tentava convencer-se de que nada tinha mudado, mas sabia perfeitamente que não passava de uma ilusão temporária.
Sabia perfeitamente que quando saísse daquele quarto se ia confrontar com a realidade. Mas o planar e a respiração pareciam ser a solução perfeita para o momento. Expirou o fumo benéfico saiu de dentro dele como se levasse com ele os problemas de toda uma existência. Uma eternidade.
Inspirar. Expirar...

E o acordar era o mais difícil.
Acabou Carlos, volta à realidade. Já não há rede que te sustente neste trapézio da vida. Acorda, que o mundo espera por ti. Ainda não acabou o teu caminho por cá.
Não. Só mais um bocadinho. Deixa-me dormir.
Sabes perfeitamente que adormeces para sempre se te deixares dormir. Sabes perfeitamente que o modo automático é o caminho mais fácil e menos doloroso. Mas não é o certo. Acorda. Já!
Está bem... Pff... Mas porquê? O que é que me sustem, ã? Tu que és tão forte e tão seguro, responde! O que é que ainda faço aqui? Tudo à minha volta se desmorona! Até aqueles que julgava mais fortes esvanecem. Já não tenho para onde olhar, nem onde me amparar. É como um castelo de cartas, cai uma, caem todas. E eu sou a última que ainda resta cair. Eu e o pai. Mas esse velho lunático já não conta. Não há-de faltar muito até que bata a bota também.
Oh Marta, onde estás?

E adormeceu de novo... Embalado pelas suas próprias palavras contraditórias.
Dantes não era assim. Dantes sempre fora ponderado. Sempre tivera razão. Dantes era calmo e controlado. Dantes era tão mais fácil.
Tudo é tão mais fácil que a loucura.

Tinha de ir visitar o velho. Era a sua única certeza.
O lar sempre lhe dera arrepios. Inconscientemente sentia que um dia havia de lá ir parar também e isso punha-o mal disposto.
“Hugo Rocha, 3º andar à direita. O elevador é ali ao fundo.”
Um enfermeiro, ahah, um enfermeiro! Como é que um homem conseguia sequer imaginar que ia ser enfermeiro?!
Como é que ainda te consegues rir?
Oh tu cala-te! Já não basta ter que te aturar quando estou mal...
E estás bem agora?
Não.
Bem me parecia.
Chegou-se bem ao fundo do espaço metálico para caber um número máximo de cadeiras de rodas. Mas não entrou nem uma. Ficou fechado consigo próprio até ao 3º andar. À direita.

“Olá, Pai.”
O quarto tinha um cheiro similar ao seu, com a excepção de que ali eram medicamentos a sério. A um canto Patrícia mostrava os dentes numa moldura.
“Carlos, és tu? O Vicente não veio contigo?”

20 março 2006

Lucinda

Esperava em frente à lareira a tricotar uma peça sem sentido. Já há muito que os pequenos não usavam as meias de lã, nem os grandes os gorros e os cachecóis. Já há muito que os armários tinham ficado vazios. As gavetas enchiam-se cada vez mais. Papeis de receitas, pacotinhos de açúcar, orações e dedais e agulhas, as pilhas do telecomando arranjado com fita cola, e o naperon que a filha mais velha nunca tinha querido levar.
O ar abafado de verão entrava pela janela, trazia o cheiro a terra seca e a frutos maduros.
Com um gesto rápido esmagou uma vida contra a mesa.
“Malditos mosquitos!”
Cucu, cucu, cucu, cucu... Taandaandandaan taandandandan. Taaaan… Taaaan… Taaaan...
As almas da casa solenemente anunciavam o tempo. Profusão de ruído necessário. Mas também, a audição já não era o que tinha sido.
Levantou-se da cadeira que gemeu com o aliviar do peso. Andou devagar, com uma cadência esquardina até à janela e sorriu antecipando a visita.
Ding dong.
Ele nunca se atrasava.
Falaram sobre o tempo e sobre a saúde dos outros velhos da rua, sobre a paróquia e sobre a nova creche. E como sempre, não havia correio.


19 março 2006

22:22


Porque é que ainda aqui estou?
Afinal, enganei-me de estrada ou quê? Porra, o que é isto?! Gaze? Quero lá saber da gaze! Que coisa, nunca se vendem mapas para os lugares mais importantes.
E também, que zunzum! Eh pá calem-se lá que eu estou cansado!
Calem-se!
E surdos ainda por cima! Não percebem que eu me estou completamente a lixar para o que vocês estão para aí a dizer!
Deixem-me em paz! Gaze, maravilha! Fantástico, agora nunca mais saio daqui!
Eh pá, o que é isto? Estou preso? Ha, ainda por cima! Têm medo que eu me vá embora, é? Faço falta a alguém por acaso? Vá, perguntem a vossa volta! Nem aquela velha ali ao fundo se importa! Está a chorar? Está a chorar mas não engana ninguém!
Deixem-me ir!
Ai o caneco, que eu já não estou a gostar nada disto! Oh chavalo! Oh tu! - Ai, que merda é esta? - Oh tu! Estou cheio de calor! Baixa a porcaria do termostato!
Está com convulsões!
Ai mãe santíssima! É agora. Porra. Onde é que eu deixei a merda da carta? Mariana...
Hora do óbito: 22:22

O quarto quente e abafado era pequeno demais para tanta alma.
E no entanto a débil Patrícia dormia...
- Mãe, porque é que a avó não acorda?
- A avó está num sono muito profundo, meu querido. Pode acordar um dia, mas pode acordar nunca.
Olha porque estou em coma pirralho! Porque bati com a cabeça no raio da cómoda quando estava a apanhar a meia do teu avô do chão! Aquele homem nunca arruma nada. Deixa tudo espalhado por todo o lado. Incrível, nunca vi coisa assim!
- Ela está viva, não está mãe?
- Sim, está.
Se estou viva? Claro que sim! Olha-me essa, não se livram de mim tão cedo! Se estou viva?! Bah, mas que pergunta mais parva. Só mesmo tu, pirralho, para fazeres uma pergunta pateta a esse ponto!
- Dói-lhe alguma coisa?
- Não, meu amor, ela está a dormir.
Olha por acaso até dói! Essa Mariana pensa que sabe tudo, mas não vás por ela! Estou aqui com umas hemorróidas há umas semanas e doem-me a valer. Não sabes o que são hemorróidas, pirralho? Olha, nem queiras saber! Uma chatice no cu, é o que são!
E por falar em chatices, alguém viu o Vicente? Miúdo ranhoso, nem sequer cá está!
- Ela ouve o que eu digo, mãe?
- Não, ela está a dormir.
Eu não disse?! Mentirosa! Oiço muito bem! Mas não quero saber disso para nada. Onde é que está o Vicente?
- Posso falar com ela?
Vicente? Vicente?
- Vai se quiseres, mas não chegues muito perto.
De repente a velha soltou um grito:
- Vicente!
- Oh minha sogra, enterrámos o Vicente a semana passada. – disse a mulher.
Ai que o deixei morrer! Ai meu amor! Ai meu filho! Meu querido filho! Mas porque é que fizeste aquilo? O que é que eu te fiz?
Uma lágrima escorreu pelo rosto gasto de Patrícia.
Assustado, o miúdo chegou-se devagar ao rebordo da cama:
- Avó, gosto muito de ti.
Está bem pirralho.
Foi num silêncio aparente que o tempo se eternizou.
E o relógio marcava 22:22.