20 março 2006

Lucinda

Esperava em frente à lareira a tricotar uma peça sem sentido. Já há muito que os pequenos não usavam as meias de lã, nem os grandes os gorros e os cachecóis. Já há muito que os armários tinham ficado vazios. As gavetas enchiam-se cada vez mais. Papeis de receitas, pacotinhos de açúcar, orações e dedais e agulhas, as pilhas do telecomando arranjado com fita cola, e o naperon que a filha mais velha nunca tinha querido levar.
O ar abafado de verão entrava pela janela, trazia o cheiro a terra seca e a frutos maduros.
Com um gesto rápido esmagou uma vida contra a mesa.
“Malditos mosquitos!”
Cucu, cucu, cucu, cucu... Taandaandandaan taandandandan. Taaaan… Taaaan… Taaaan...
As almas da casa solenemente anunciavam o tempo. Profusão de ruído necessário. Mas também, a audição já não era o que tinha sido.
Levantou-se da cadeira que gemeu com o aliviar do peso. Andou devagar, com uma cadência esquardina até à janela e sorriu antecipando a visita.
Ding dong.
Ele nunca se atrasava.
Falaram sobre o tempo e sobre a saúde dos outros velhos da rua, sobre a paróquia e sobre a nova creche. E como sempre, não havia correio.


Comentàrios:
Terrível...amigo...terrível!!!!
É uma solidão tão tranquila, de tão grande que é, que já nem forças tem para se desesperar. Estar para além do desespero...terrível!
Olho...gosto das tuas diferentes formas de escrever...este é o melhor! Deu-me vontade de chorar ao sentir que já nem lágrimas há...pela resignação. E o nome....bem escolhido...e todos os pormenores que tecem o silêncio.
Não devia ter vindo ler-te logo pela manhã...vou andar a pensar nisto o dia inteiro!!
Beijo em tom de carta de correio.
 
...e a foto...perfeita!
 
Bem… parece que a Clarissa já disse tudo.

Acrescentarei, que dos teus diferentes estilos, este é o que mais me agrada e, parece-me também, que é neste que pões mais cuidado.

Francamente gostei.

Um abraço.
 
Muito sinceramente penso que este deve ser um dos teus melhores textos!
Rico, carregado de imagética ;)
Continua que, sem sombra de dúvida, estás no melhor caminho.

Beijinhos :)
 
Fortemente angustiante, uma peça de um futuro que nos aguarda, uma vida vazia mais cheia de lembranças ate mesmo de que nada existiu.
Solidão sublime, lindo texto cheio de detalhes, perfeito, imagem igualmente fabulosa.
Parabéns.

[s]s
 
ai ke gente tao simpatica:)
you people made my day

de facto este texto n e bem como os outros. inicialment tinha outro proposito, mas gostei tanto da personagem que a historia voou sozinha. de certa forma eu ja nem controlava nada, deixava-me levar pelo que a personagem queria.

um terrivel obrigado
abraços aos montes
 
Enviar um comentário



Voltar