28 janeiro 2006

Catarina

Sempre detestara o rosa. A cor enjoativa, criança, com ares superiores. “Olhem para mim como sou feliz.” E chegava o dia dos namorados e o tormento atingia o seu auge. Faça-o feliz com Xpto. Ofereça-lhe um perfume, lingerie, doces, telemóveis, carteiras, pantufas. Por todo o lado o suplício.
Imagens, fotografias, sorrisos falsos, desenhos melosos, maldosos, mentirosos. Etiquetas nos rostos. Etiquetas de rostos. Seja como os outros, seja diferente, único e original. Veja como pode ser feliz. Seja assim, tenha isto. Comprar felicidade sob a forma de amor. Tudo isto a deprimia. Fechada em casa sorria sozinha. Vestida de lingerie fina preta com uma taça de champanhe na mão, sorria. Perdida em si. Lembrava-se de quando não estava só. Quando aquela casa, aquele raquítico apartamento, transbordava de vida, de sentimentos, de amor. Calor.
E agora restava a saudade e a humidade da sala. Nostalgia. Estupidamente sorria.
Os dedos descalços enroscavam-se sem pensar. E o champanhe borbulhava esperando ser bebido.

- Vá lá, deixa-me entrar!
- Não! Desta vez sou eu sozinha.
- Pelo menos destranca a porta!
- Não! Depois tu entras às escondidas! Vai-te embora!
- Não te demores!
- O que é que é este barulho todo?
- Oh, é a Catarina que quer tomar banho sozinha e não me deixa entrar.
- Deixa-a estar, já é crescidinha – aproximou-se e abraçou-a.
- Sim, mas vai-se por a gastar água que nem uma maluca – afastou-se ligeiramente e gritou – Não gastes muita água!
- Está bem!
Carlos voltou a apanhá-la devagarinho.
- Vá lá – passou-lhe os dedos pelo pescoço. – Não te preocupes, - desceu até à curva dos seios – até temos um tempinho para nós.
Marta olhou para o marido com relutância. Ele riu-se. Agarrou-a pela cintura e levou-a às costas, como um saco de batatas, até ao quarto, ignorando os seus gritinhos histéricos de criança divertida.

- Catarina, já está? Acaba com isso, estás a gastar imensa água!
A água continuava a chover dentro da casa de banho.
- Catarina abre a porta imediatamente! – Carlos aproximou-se. – Ela não abre a porta. Catarina!
- Ela não deve ouvir por causa da água. Não tens outra chave?
- Não – uma nota de pânico nascia na voz dela. – Ai Carlos , abre a porta!
- Oh Marta não consigo abrir a porta sem a chave!
- Arromba-a!
- Tens a certeza?! A miúda está bem.
- Não está nada! Abre a porta!
Carlos reparou numa mancha de tinta na zona metálica do buraco da fechadura. Ainda se lembrava de ter pintado aquela porta. Agora corria contra ela.
A porta caiu estrondosa. A casa de banho estava inundada de vapor. Catarina estava caída na banheira e a chuva a cair-lhe no rosto.
A chama do esquentador brilhava e um pijama rosa esperava ser vestido.
Marta nunca mais foi capaz de tocar no marido.

22 janeiro 2006

Cinza

Já estava preso há um ano. Há um anos que estava por trás das grades. Há um ano que a luz do sol era vista às riscas. Há um ano que andava à volta no espaço pequeno. Que repetia as mesmas palavras. Que ouvia as mesmas conversas. Que era denegrido, gosado, ridicularizado. Há um ano que não vivia. Mas antes, ... O que é que tinha antes? Não muito mais, pensava. Afinal sempre tinha feito parte daqueles que nunca foram livres. Aqueles cujo o mundo se reduzia às suas pequenas vidas insignificantes, controladas por outros. E os olhos verdes chorosos nunca haviam de mudar alguma coisa.

O homem de cinza aproximou-se por de trás das grades. Sorriu. Sempre o fizera para ele. Passou uma bolacha para dentro das grades e riu-se vendo o corpo da sua vítima correr para a apanhar. Comeu depressa apanhando todas a migalhas do chão imundo. Quando a fome aperta, não há que ser esquisito. Não via comida há semanas. Semanas. Poucos sabem o que é a fome. A verdadeira fome. O estômago a destruir-se com os próprios ácidos, a língua seca que pouco a pouco perde a sensibilidade aos sabores, as tonturas de morte e a fragilidade.

O homem contemplava-o, de certa forma fascinado. “Olá”- disse com aquele sorriso parvo estampado na cara. Vendo que não lho era retribuído insultou-o. Virou-lhe as costas afastando-se.

Sempre tivera medo do Cinza, mesmo assim recusava-se a falar com ele. Mas agora que a fome o roía, os princípios já não tinham grande importância.
“Olá”
O homem virou-se. “Tu falaste?” Olhava para ele como se fosse um prodígio da natureza. Ele por sua vez olhava para o Cinza implorando mentalmente que aquela palhaçada lhe desse algo para comer.
“Falaste, não falaste? Olá!”
“Olá” respondeu friamente, amaldiçoando-se por ter aberto o bico.

“Maria! Vem cá ver! O papagaio fala!”

19 janeiro 2006

Clara

Os nós dos dedos das mãos de António já deviam estar habituados àquele frio agreste e ao trabalho pesado que lhes infligia. Estupidamente a pele escamava.
Largou a pá que caiu ruidosamente na terra. Era cada vez mais difícil aguentar aquele trabalho. Especialmente desde que a sua mulher tinha desaparecido. António não aguentava estar sozinho. Abriu a braguilha contente por saber que se ia vingar. Era uma vingança pessoal, porque não se podia tratar de um crime se a vítima não estava consciente, pois não?

Era estanho voltar a nascer. Era estranho voltar a viver. Abriu os olhos para os fechar de seguida. Era demasiado penoso tentar perceber o que estava ali a fazer. Insistiu consigo própria e voltou a olhar. Sim, só podia ser um hospital. Um ritmo de beeps marcava o compasso e vozes ecoavam no corredor. Um quarto branco e nu. E ela ligada a máquinas, a muitas máquinas, demasiadas. Quando estava prestes a arrancar o tubo que tinha na garganta, a porta abriu-se. Uma mulher de verde entrou.
- Não, não! – gritou; não foi bem gritar, foi mais berrar – O que é que pensa que está a fazer? Não arranque isso! Pare quieta!
Correu para a cama e puxou-lhe bruscamente o braço para baixo. Depois virou-lhe as costas e pegou num telefone branco, como o quarto.
- Sim, ela já acordou. Venha depressa, tenho medo que a maluca tente arrancar o tubo do ventilador outra vez. Sim, quando entrei. Está bem.
Chegou-se perto da cama e colocou mais uma almofada atrás das costas da paciente. Gestos bruscos, maquinais, de maneira absurdamente fria.

A porta não tardou a abrir de novo. Desta vez a companhia era maior. Dois homens. Um de bata branca e outro de casaco castanho. Uma mulher. Alta e elegante, mas roída pelos anos ingratos da vida.
Correu para ela e chamou-lhe filha. “Filha...? Ela é minha mãe? Então o outro deve ser o meu pai.”
- Como é que te sentes minha querida? – a ânsia daquela mulher quase de se cheirava no ar. Via-se, sentia-se, a voz tremia.
- Ela tem um tubo pela goela abaixo, achas que consegue falar? E também que raio de pergunta. Se tivesses tu um tubo metido na garganta, como é que te sentias...?
A mulher olhou para trás com um ar reprovador, ao qual o marido respondeu com um revirar de olhos.
- De facto, a paciente está incapacitada de falar. Suponho que posso desligar o ventilador durante um bocadinho, as constantes estão estáveis. – aproximou-se da cama – Vai tossir quando eu puxar, está bem?
Clara tossiu e vomitou. Vomitou de estômago vazio. Um cheiro nauseabundo e ácido invadiu de vagar o quarto. Ao menos o tubo já não lhe estava na garganta.
Pigarreou.
- Que dia é hoje?
- Querida tu tiveste um ataque cardíaco à dois dias. Na verdade, tu morreste à dois dias atrás. À noite depois do enterro recebemos um telefonema do coveiro em pânico a dizer que tu tinhas acordado. – fez uma breve pausa para verificar que a filha assimilava tudo o que lhe era dito, mas também para recuperar ela mesma do que tinha acabado de dizer – Tens estado a dormir desde então.
Lembrava-se de um homem com um bigode mal cortado e a boina rota. Ele estava a sorrir. Era uma imagem de poucos segundos, mas era aquilo que mais claro estava na sua mente...
Não se lembrava de mais nada. Espera! Havia mais qualquer coisa. Sim, um momento! Uma apoteose e depois, nada.

Clara voltou para casa umas semana depois. Amnésia, perturbações psicológicas e agressões verbais recorrentes.Nove meses mais tarde deu à luz um rapaz. Com 15 anos, virgem, Clara deu à luz um rapaz.

17 janeiro 2006

Cláudia

Olhou pela janela e sentiu o frio lá de fora gelar-lhe o espírito. Afastou-se depressa fechando as cortinas com cuidado para que o calor do aquecedor não fosse dissipado. A máquina de lavar fazia o seu barulho característico e a roupa afogava-se lá dentro. Eram os únicos sons naquele espaço frio.

Nunca ninguém vinha lavar roupa tão cedo. Instalou-se num banco plástico cor-de-laranja. Num dos bancos plásticos cor-de-laranja. Todos eles alinhados numa métrica estupidamente mal enjorcada. Tal como as máquinas, umas mais à frente, outras mais atrás. Eram estes estúpidos detalhes que mais enervavam Cláudia.

Passou a mão pelo cabelo e coçou o crânio. A estúpida da água de casa, demasiado calcária, dava-lhe cabo da cabeça. Literalmente. Provocava-lhe caspa e uma comichão atroz, assim como lhe dava cabo da roupa. Ela girava. Às 5h da manhã a roupa girava numa máquina. Com os olhos, Cláudia seguia o bailado aquático através da superfície plástica transparente.

A campainha da porta tocou e esta abriu-se. Uns sapatos de vela gastos, cabelo preto espintalgado de prata e um sobretudo verde, foram as últimas coisas que Cláudia viu.

Ninguém a procurou, ninguém se preocupou e o homem da lavandaria juntou mais umas peças de roupa esquecidas à sua colecção. "Olha a Mariana vai gostar deste casaco. Não sabia o que lhe dar pôs anos, olha problema resolvido."

06 janeiro 2006

Ela

"Hum... A vida continua neste lado do planeta..."
‘Não sei, devo estar com alguma espécie de depressão parola que está na moda.’ pensou contemplando a folha onde escrevia. Onde as letras ingratas, a tinta, eram traçadas, subtilmente pousadas na fibra complexa e branca do papel. Levantou o olhar para o pousar naquilo que o tinha estado a perturbar desde a semana passada. Aquilo que lhe tinha tirado o sono durante noites e noites a fio. Um telemóvel em cima da secretária. Silencioso, por fim. Era o medo de que tocasse. Um medo surdo de que a voz do outro lado voltasse a surgir. Ela. Sempre lá, com falinhas mansas. Com conversas que o iludiam. Que o deixavam nu de espírito. Ela que o consumia. Ela que insistia em voltar. Ela.

Nos seus poucos momentos de lucidez, já tinha pensado em livrar-se d’Ela. De uma vez por todas, porque a primeira tentativa aparentava ser um fracasso. Mas a ilusão voltava a levá-lo para aqueles desertos quentes, para aquelas terras geladas de paixão. E tudo mudava. Ela passava a ser necessária. Como água de um oásis, era indispensável.

Sabia que ia tocar. Tocava sempre. O rádio emitiu o característico som de interferências sonoras “tdd tdd tdd”. E tocou. Durante minutos Manuel não reagiu, continuou a olhar para a folha onde ainda só constava uma frase. Depois de uma breve inspiração atendeu.

Odeias-me? - foi o que ouviu do outro lado.
A verdadeira resposta seria um “Sim” nu e cru, mas a vida já lhe tinha ensinado que a verdade nem sempre era bem-vinda.
Odiei-te durante uma semana, mas agora acho que não. - disse

Tenho antes pena de ti minha tonta. Não vez que estou farto? Farto de tudo o que vivemos, farto de tudo o que insistes em reviver. Farto de todos os telefonemas, farto de todas a conversas que me obrigas a ter. Farto de tudo pelo que me fizeste passar. Farto dos teus pedidos de desculpas. Farto de não saber o que quero, farto de não saber quem sou. Farto daquilo que vejo em ti e farto daquilo que vi em ti. Farto da tua estúpida minúcia, farto da tua esperteza e do teu fogo no olhar. Farto desses cabelos oleosos e do enfático perfume que deixas no ar. Farto, estás a ouvir? Farto! E ainda mal comecei. Tudo o que me fizeste, (porra!) Só me quero é esquecer. Quero lá saber de conversas parvas para esclarecer as coisas! Achas que isso nos vai levar a algum lado?! O mal está feito, resta esquecê-lo!

Foi por tua causa que entrei neste mundo e é por tua causa que não consigo sair. Preso como cão à trela. Um animal enjaulado que quer comer. Mas eu não quero, preciso. Preciso disto para viver! E por tua causa. Por teres voltado, por teres feito pouco de mim pela segunda vez. E digo-te: pela última vez! Estou farto do teu ar bem-disposto e despreocupado; a vida tem muito mais que se lhe diga, minha menina. E estou farto de estar adormecido.

Óptimo então! Vens cá a casa hoje à noite? – era mais uma ordem do que uma pergunta.
Sim.